sexta-feira, 8 de abril de 2016

Quais são os limites do processamento na Astrofotografia?

Eis aqui um tema polêmico, sobre o qual há muito tempo eu gostaria de ter escrito. Quais são os limites no processamento de uma imagem astrofotográfica? O que é fraude, exagero ou puramente mal gosto? Qual a fronteira entre o simples ajuste e o desenho?

Trata-se provavelmente do tema mais delicado da Astrofotografia. Com as palavras erradas, corro o risco de ofender astrofotógrafos honestos e que muito contribuem com o disseminação da astrofotografia amadora no Brasil. Em post anteriores, já mencionei atitudes que são "consagradas" como sendo fraudes: juntar sua imagem com de outros astrofotógrafos sem o devido crédito, ou usar de montagem para capturas que não ocorreram, citando o caso da malfadada foto do trânsito da ISS sobre Saturno. Esta "captura", pra quem não leu o post, foi Foto do Dia no site da Nasa, APOD, sendo retirada dias depois, após muito barulho da comunidade astrofotográfica. Mas outras atitudes ainda carregam bastante polêmica, com alguns astrofotógrafos dizendo que são aceitáveis, enquanto outros acham que não são corretas.

Eu vou discorrer neste post sobre técnicas que levantam discussões e o que eu acho de cada uma delas. Que fique claro, trata-se de uma visão puramente pessoal, algumas vezes justificada somente por questão de gosto. Sinta-se livre para questionar minhas opiniões, pois elas estão abertas a mudanças.
- Uso de máscaras de seleção: Selecionar áreas separadas de registros é algo que desagrada astrofotógrafos mais puritanos. Eu, sinceramente acho que não há nada errado em se fazer isso se você não altera as características dos objetos. Acredito que grande parte das melhores astrofotografias foram processadas utilizando-se máscaras de seleção. Em muitos lugares do céu, temos objetos bastante brilhantes envoltos por áreas ou objetos muito mais escuros. As câmeras atuais, embora consigam tempos de exposição que permitem imagens muito mais claras que a visão humana, ainda perdem muito quando falamos de range dinâmico. Objetos mais claros tendem a ficar muito mais brilhantes em relação a objetos mais escuros em fotografias do que ao olho humano. Então, não vejo nada de errado ao se utilizar máscaras para clarear áreas mais escuras das fotos. Você está basicamente fazendo uma correção no range dinâmico de sua câmera.
A coisa muda de figura quando você altera características básicas de objetos: Este é um erro que acontece principalmente quando se usa máscaras de seleção sem o devido critério. Você seleciona duas galáxias e no fim deixa a mais brilhante mais escura do que a menos brilhante, distorcendo totalmente as características dos objetos. Um erro que tenho visto astrofotógrafos cometerem é distorcer nebulosas escuras, que são cinzas, transformando-as em nebulosas de emissão, pintando as nebulosas de vermelho para destacar melhor na foto. Isso revela, além de desconhecimento sobre o objeto fotografado, uma vontade exagerada de gerar contraste ou beleza na imagem. Evite máscaras de seleção para alterar cores dos objetos em separado na imagem. Além de ultrapassar o limite entre tratamento e puro desenho, você corre o risco de descaracterizar objetos.

- Composição de imagens: composições geralmente são usadas nos registros de acontecimentos celestes, como conjunções, trânsitos ou ocultações e também fotos de objetos celestes ao fundo de paisagens terrestres. Quando você tem dois objetos com brilho muito diferente um do outro, é normal que o astrofotógrafo faça duas imagens com tempos de exposição diferentes para combinar numa única foto. Essa técnica é consagrada e inclusive tem o nome de HDR (High Dynamic Range). Através desta combinação, você pode criar imagens que aparentemente possuem um range dinâmico muito maior do que a câmera utilizada na captura, com resultados superiores ao que se consegue com o uso de máscaras de seleção. Entretanto, ao fazer imagens em HDR, tome muito cuidado para não forçar tanto até deixar o objeto menos brilhante mais claro do que o objeto escuro.
O problema ocorre quando, devido a certos astros movimentarem-se muito rápido, ou a movimentação da abóboda celeste em relação a uma paisagem terrestre, astrofotógrafos podem querer selecionar um dos objetos na foto mais clara e colocar manualmente na mesma posição em que está na foto mais escura. Isso me desagrada bastante e acho que não dá pra chamar de fraude, mas podemos dizer que é mais um caso em que astrofotógrafo ultrapassou a fronteira entre foto e desenho. Não são poucos os astrofotógrafos que consideram isso puramente adulteração, então evite sempre que puder. Já se o autor da imagem resolver, através das ferramenta "seleção" e "mover", fazer com que os objetos parecem mais próximos do que realmente estavam em qualquer um dos registros originais, vai ser difícil encontrar alguém disposto a defende-lo. Pior ainda se em nenhum momento do evento os objetos ficaram tão próximos como na imagem.
É importante ressaltar que em quase toda astrofoto, seja de céu profundo ou planetária, realiza-se a composição de vários frames para a criação de uma imagem final. No caso da astrofotografia de céu profundo, muitas capturas podem ter seus frames capturados por dias ou mesmo anos de diferença. Isso é possível por que a maioria destes objetos não apresenta quaisquer mudanças com o passar de meses ou mesmo anos. Este processo chama-se integração de frames e trata-se de algo mais do que aceitável e é praticado por 99% dos astrofotógrafos. Aqui você está coletando dados, sem fazer alterações nos registros antes de integrá-los num software com está função, como o Deep SkyStacker ou Pixinsight. .
- Colocar coisas que não existem nas imagens: enfeitar a sua foto com algo que não estava nela, começa com o mal gosto, com o uso de spikes artificiais em fotos que não tinham estes artefatos naturalmente, e termina na fraude, como você colocar uma avião na frente de uma foto do Sol, sendo que foram capturados em registros diferentes. O Apod do falso trânsito da ISS sobre Saturno está nesta categoria.

Quanto ao Spikes, eles são uma interferência nas astrofotos, frutos de um obstáculo a chegada da luz no espelho primário, devido ao suporte do espelho secundário em refletores. Alguns astrofotógrafos usam softwares que criam spikes artificialmente nas estrelas mais brilhantes das imagens. Eu acho que isso mata qualquer imagem. Alguns astrofotógrafos colocam barbantes ou outros tipos de cordões à frente do telescópio para criar spikes mais "naturalmente". Para mim, não importa como o spike seja produzido, não vejo razão em poluir a seu registro com esse tipo de artefato. É algo que tira grande parte do valor da imagem, deixando ela com aspecto de cartão de Natal. O universo é belo demais e um grande astrofotógrafo não precisa introduzir enfeites em sua imagem para agradar ao público.

Acho que não preciso dizer que o uso de recursos como a ferramenta "pincel" deve ser sempre evitado. Se você esta fazendo ajustes em sua imagem com qualquer ferramenta de desenho, pare agora. O que você esta fazendo invalida a sua astrofoto e, se omitido e depois descoberto, vai destruir o crédito de suas imagens. Infelizmente, não é fácil descobrir quando isso é feito. Existem astrofotógrafos respeitados dentro da comunidade astrofotográfica que, por mais que sejam reconhecidos, também carregam uma "aura" de usarem recursos de desenho em suas fotos. É muito complicado julgar este tipo de coisa enquanto não houver provas concretas. Eu mesmo acredito que em algum momento já suspeitaram das minhas fotos, embora considere um enorme elogio quando alguém questiona a autenticidade de meu trabalho, dizendo que as minhas fotos não são possíveis. 
- Uso de dados de outros astrofotógrafos em suas imagens: Não é raro que astrofotógrafos juntem suas imagens com de outros astrofotógrafos para criar uma imagem ainda melhor. Sou da teoria de que esta técnica é válida somente se o resultado final é uma foto superior às duas imagens utilizadas na composição. Na imagem abaixo eu utilizei uma captura em preto e branco da faixa de H-Alpha do astrofotógrafo Rogério Marcon, com a devida autorização do astrofotógrafo, diga-se de passagem. Ele tinha um espetacular luminance capturado com um telescópio de 18 polegadas e eu tinha uma humilde captura em banda estreita (Hubble Palette), feita com uma lente de 135mm. Joguei as cores do meu registro na imagem do Rogério e o resultado foi algo que nenhuma das imagens originais mostrava, a nebulosa com detalhes e cores que destacam as regiões com mais oxigênio (em azul) ou hidrogênio (em laranja).
Imagem capturada por Rogério Marcon, que recebeu cores de um registro feito por mim.
 Por fim, acredito que nenhuma astrofoto é desonesta se você colocou todas as informações sobre a captura no registro. Se você usou dados de um outro astrofotógrafo para fazer uma imagem, informe na descrição todos os dados da fonte que usou, incluindo nome do autor, equipamento e detalhes da captura. Se usou duas fotos diferentes para o registro de uma conjunção, informe caso a imagem tenha sido manipulada para simular o acontecimento real. Se pintou nebulosas de cores diferentes, explique que o fez com o objetivo de realçar aquele objeto. O ideal é que estas informações estejam presentes no arquivo da imagem e não somente na descrição do post, pois quando são partilhadas em outros sites ou perfis, essa informação pode se perder.

Existem registros que são simplesmente considerados "overprocced". São fotos que foram tratadas sem qualquer tipo de forçação de barra, mas que de tantos filtros e ajustes de contraste podem acabar com o aspecto de pintura a óleo. Ou seja, você não desenhou na foto, mas deixou ela com cara de desenho. Estas fotos, em especial as mais coloridas, podem até se tornar muito populares, principalmente entre o público leigo. Mas podem desagradar olhos mais experientes. Todo astrofotógrafo tem que entender que, em alguma hora é melhor parar. Em algum momento, a aplicação de filtros e ajustes começa a piorar a imagem. Saber onde está este ponto não é fácil.

Um tipo de filtro digital que mais tem a capacidade de deixar fotos com cara de pintura são os de redução de ruído, quando aplicados em excesso. O astrofotógrafo manda ver no contraste e na saturação (realce de cores), mas assusta-se com o ruído que isso gera em sua imagem. Para compensar, despeja filtros de redução de ruído. Eu prefiro muito mais imagem ruidosa com cara de foto do que uma imagem sem ruído, mas com cara de que foi feita pintada pelo Renoir.

O processo de aprendizado no tratamento de uma astrofoto é longo. Não é raro um astrofotógrafo pegar os frames de uma captura de um ou dois anos atrás e conseguir um resultado muito superior ao que conseguiu na época da captura, mostrando técnicas de processamento muito mais eficientes e adequadas. Autores com registros psicodélicos podem mudar para um estilo mais sóbrio ao perceberem que estavam passando do ponto na hora de tratar a imagem. Neste caminho, todos cometemos enganos. O importante é entendermos que sempre podemos melhorar nosso trabalho com dedicação, melhores equipamentos e aprendizado constante, mas nunca devemos cair na tentação de fazer nossa imagem parecer melhor tendo que enganar as pessoas.



8 comentários:

  1. essa imagem do APOD se encaixa nessas fotos?
    APOD do dia 28/03/2016, de uma olhada.
    link:http://apod.nasa.gov/apod/ap160328.html

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mario, essa foto é polêmica, parece que o cara fez as fotos separadas, inclusive com Órion mais alta do que na imagem, e juntou. Eu não faria isso.

      Excluir
  2. Qual sua opinião sobre a redução do tamanho de estrelas?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Samuel, falando pessoalmente,não vejo nenhum problema se feita com filtros adequados ou mesmo recursos de softwares, como o Pixinsight ou Astronomy tools. Trabalhar com estrelas junto com as nebulosas é uma das tarefas mais complicadas do processamento. Se o cara usar ferramentas como pincel, obviamente ele desenhou. Aí é do critério de cada um.

      Excluir
    2. Entendi. Eu, como não tenho os programas, geralmente faço com o Photoshop, naquele esquema bem conhecido.... seleciona o fundo preto, inverte, expand, feather, filter - other - minimum.

      Excluir
  3. confesso que sou preguiçoso. E assim não falsifico muito resultados. Porem acredito que certos objetos obrigam mais "pós-produção" para terem um "it". É possivel que isto seja fruto de minha preguiça em capturar mais frames. De qualquer forma acho fundamental buscar realismo entendendo que capturas em narrow bands não serão nunca semelhante ao que se vê na ocular. E honestidade em caso de composites. E para mim astrofotografia é somente parte de algo muito maior...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim Nuncius. Eu admiro seu trabalho de astrofotógrafo justamente pela riqueza dos textos que acompanham suas capturas. Pra mim estão entre os melhores.

      Excluir
  4. Boa tarde Rodrigo, muito bom o artigo. Eu tenho uma dúvida em relação ao método de integrar um registro feito por um equipamento com outro registro feito com equipamento diferente, usar as cores de um registro em outro, etc. Como isso é possível? No caso do registro também ter sido feito com outro tipo de camera, não haveria diferença no tamanho das imagens, resoluções diferentes, etc? Confesso que nessa parte sou extremamente leigo. Se pudesse me explicar como isso funciona ou me indicar algum material eu ficaria muito agradecido.

    ResponderExcluir

Eu tenho me esforçado para responder todos os comentários, mas posso demorar um pouco, ou mesmo esquecer algum. Por isso, peço paciência e não fiquem constrangidos de me darem um toque, caso eu esteja demorando demais.