segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O Falso trânsito da ISS sobre Saturno: O APOD e os limites da astrofotografia

O APOD de 22 de janeiro de 2016

Mais uma vez temos um caso barulhento sobre manipulação na astrofotografia (muitos não hesitam em usar o termo FRAUDE). Isso mesmo! Só que dessa vez foi no lugar onde o barulho seria maior, no site da NASA que elege todos os dias uma astrofotografia de destaque, o APOD, ou Astronomy Picture Of de Day. Por estar no site da NASA, esta página é com certeza o local onde uma astrofotografia publicada terá mais visibilidade. Eles elegem imagens do Hubble, de sonda espaciais, como a News Horizons, que foi até Plutão e esporadicamente elegem imagens de astrofotógrafos amadores. Ter a sua astrofoto reconhecida pela NASA, numa galeria ao lado de imagens do Hubble e da Sonda Cassini certamente é algo que empolga qualquer astrofotógrafo.

Mas ter uma foto sua no APOD não é fácil. Eu mesmo já mandei algumas e não tive nenhuma eleita. E por mais que a gente fale que não se preocupa com isso, sempre acaba passando por algumas situações. Uma vez, dando uma palestra em João Pessoa, um dos espectadores não perdeu tempo em me perguntar se eu já tinha tido um APOD. Eu respondi que não e para sair desta situação mostrei uma imagem minha para o público, a da Nebulosa do Camarão, que estampa a foto do título deste blog, que apesar de não ser perfeita, é sem falsa modéstia um dos mais claros registros já feitos desta nebulosa. Percebi que o público ficou muito satisfeito com o que viu e continuei a palestra.

Recentemente fiz os primeiros contatos para ver onde vou mandar imprimir o livro sobre astrofotografia que estou finalizando (Isso mesmo, finalizando!!). Ao me apresentar como astrofotógrafo para o editor, ele com muita empolgação me perguntou se eu era aquele brasileiro que teve uma imagem publicada no site da Nasa e que ficou uma semana no ar. Eu entendi rapidamente que ele estava falando da página do APOD e da imagem do Carlos Fairbairn, que foi eleita no ano passado. Por mais que a gente queira relevar, acaba sendo chato ter que dizer que não, não era eu.

É aqui que está o problema. De repente, para algumas pessoas o APOD vira um troféu no curriculum do astrofotógrafo, algo que você precisa ter em seu cartão de visitas, principalmente para o público leigo, que não sabe que a  maioria dos melhores astrofotógrafos amadores do mundo não tem e nunca irão ter uma imagem publicada no APOD e não se preocupam com isso.

Mas muitos outros astrofotógrafos claramente se preocupam em ter um APOD. Eu mesmo não vou ser hipócrita e dizer que eu não gostaria de ter uma imagem lá. Eu já tive um AAPOD (Amateur Astronomy Picture of The Day), um EPOD (Earth Picture of The Day) e uma foto do dia no Astrobin e em todos estes momentos não deixei de demonstrar minha alegria pelo reconhecimento recebido pelos operadores destes sites. E ter um APOD certamente seria motivo de comemoração.

O problema que estas eleições também geram um caráter competitivo à astrofotografia e o que era para ser um prazer, uma fonte de conhecimento, se torna um desafio de provar quem é o "melhor" astrofotógrafo. E quando adicionamos competição a um hobby, não irá demorar para que alguns, na sede de terem sua imagem eleitas por alguns destes sites, usem artifícios, digamos, não ortodoxos, em seus trabalhos.

A discussão sobre quais são os limites do processamento na astrofotografia é antiga, e posso dizer: apesar de estar fechada a um nicho, não é menos polêmica do que discussões sobre aborto ou pena de morte. Há muita controvérsia sobre o que pode e o que não pode em astrofotografia, mas existem algumas regras que são consenso entre astrofotógrafos e uma delas é: sempre que você usar de colagem em suas imagens, para ilustrar algo que não foi registrado exatamente por um único disparo, informe na descrição da foto. Outra regra clara é: nunca mostre algo que não seja real, que não seja possível de se capturar do local onde você estava ou que distorça a realidade. E por fim: nunca tente através da manipulação, ou do uso de imagens de outros, criar uma imagem que seria impossível com seu equipamento.

A imagem de Stephen W. Ramsden, comparando a Estação Espacial com Júpiter, que possui um tamanho aparente e brilho muito maior do que Saturno, mas é pequeno quando comparado a Estação. A imagem foi feita no mesmo dia e na mesma altitude da imagem do APOD.
 
E está semana o assunto esquentou quanto uma imagem, aparentemente incrível da Estação Espacial Internacional (ISS) passando na frente de Saturno, o que em Astronomia é chamado de trânsito, foi eleita a foto astronômica do dia 22 de janeiro no site do APOD. Não demorou muito e alguns astrofotógrafos começaram a questionar a veracidade do registro. Acredito que a imagem perdeu completamente a credibilidade após um post do astrofotógrafo Stephen W. Ramsden, comparando uma foto em que a ISS aparece próximo a Júpiter com a imagem do APOD. Na imagem de Ramsden vemos como a Estação Espacial tem um tamanho aparente maior do que Júpiter e também brilha mais do que o planeta gigante. Mas na imagem do APOD, a Estação Espacial cabe perfeitamente no disco de Saturno, que está duas vezes mais longe e é um pouco menor do que Júpiter. Além disso, se repararmos bem, o frame da Estação Espacial em frente ao planeta está mais próximo dos frames vizinhos do que os outros. Bem, como a velocidade da câmera gravando vídeo é a mesma em todos os disparos, temos que acreditar que, ou a Estação Espacial deu uma paradinha para posar para foto, ou tem algo errado com a imagem. O astrofotógrafo Brasileiro Luiz Duczmal fez uma rápida montagem para mostrar como os frames estão perfeitamente alinhados com o frame seguinte, menos no momento em que a Estação Espacial passa sobre Júpiter.


Imagem de Luiz Duczmal que mostra como a mudança dos frames varia no momento em que a Estação passa em frente a Saturno.

 O Autor da imagem é Julian Wessel, que após os argumentos irrefutáveis do Ramsden e outros astrofotógrafos, confessou a manipulação da imagem. Julian Wessel é um astrofotógrafo que tem produzido imagem muito boas, mas vai demorar para ter essa mancha apagada de sua reputação.

A discussão que fica após o caso é: até que ponto os sites que elegem astrofotos estão sendo saudáveis para o hobby da astrofotografia, por distorcerem os objetivos dos astrofotógrafos. O assunto é bastante complicado. Competição existe em qualquer atividade e hoje em dia, com a Internet, o trabalho de um astrofotógrafo amador pode adquirir visibilidade como nunca, através não apenas destes sites, mas também do compartilhamento em redes sociais e, como em qualquer atividade, sempre haverá alguém que, na ânsia de conseguir se destacar mais do que os outros, irá usar de meios errados. Os anabolizantes estão aí há décadas nos esportes e nas academias. Cientistas fraudam pesquisas para conseguir financiamentos e artigos publicados. Na astrofotografia o caso é particularmente interessante porque é uma atividade em que não há dinheiro ganho com as imagens, mas seus praticantes geralmente são pessoas que não estão tão preocupadas com isso. Afinal, quando você tem condições de adquirir os melhores equipamentos para astrofotografia e tem o tempo necessário para se dedicar ao hobby, geralmente é porque está com as finanças em dia. Mas reconhecimento é um alimento da alma e não do bolso e muitas almas estão famintas por este alimento. E quando ele começa a diminuir, ou a pessoa acha que não tem recebido o bastante, parte para estas atitudes.

Essa não é a primeira nem a última vez que esse tipo de coisa acontece. Foi mais grave por ter sido uma foto eleita por um site tão importante e mostrou que as pessoas que administram este site não estão tão atentas como deviam, ou não entendem tanto do assunto quanto achávamos.

Ter a sua foto eleita num site como o APOD pode ser um dos objetivos de um astrofotógrafo, não há demérito nisso, mas ter popularidade como seu principal objetivo pode levar você a decepções. Existem centenas, talvez milhares de astrototógrafos que estão num nível profissional. Se destacar entre eles é uma missão que irá consumir anos de aprendizado e exigir um enorme investimento em equipamentos, o que no Brasil será ainda mais doloroso. A astrofotografia tem que ser feita por prazer, por amor ao Universo. Se você sair desse caminho, pode acabar como o Julian Wessel, que, nas palavras do Stephen W. Ramsden, certamente teve um dia muito ruim.


Para mais informações sobre o caso:



Atualização: Hoje, 25 de janeiro, o APOD trocou a foto do dia 22 de janeiro, com uma pequena nota ao fim da descrição da foto: (Editor's Note: Original APOD retracted on January 25.

9 comentários:

  1. Perfeito Rodrigo. Quando vi a foto comentei com o Conrado Seródio que se fosse real certamente é uma coisa que acontece uma vez na vida. Mas o cara se passou feio....Uma pena pois a galeria dele na astrobin é muito boa. Mudando de assunto, como encomendar o livro? Abraços amigo. Maicon Germiniani

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    1. Obrigado Maicon. Acredito que quando o livro estiver pronto vai ter um link no Blog para a aquisição. Infelizmente, devido ao complexo processo de revisão. Deve levar mais uns três meses para sair.

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  2. Ótimo artigo, Rodrigo. Continue assim, enriquecendo a nossa comunidade.

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  3. Bom artigo, Rodrigo, ainda mais sabendo que você é um "defensor" permanente dos bons resultados na astrofografia, sem apelar para o excesso de manipulação ou de processamento. Infelizmente as redes sociais (inclusive aquelas com caráter mais técnico) "celebram" resultados impactantes em detrimento daquelas com as naturais imperfeições mas com fundamento técnico e com um nivel minimo de compromisso com a Ciência e com a realidade. Keep up the good work ! (Nota : desde o principio, estava evidente para mim que a "tal" imagem era uma montagem. Impossivel captar a imagem da ISS e do planeta com a mesma parametrização de captura... quem conhece um pouco de astrofotografia planetária não perderia mais que alguns segundos para chegar à mesma conclusão....

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  4. Até pouco tempo eu nunca questionava a veracidade de uma astrofotografia, no máximo discutia se foi longe no processamento, principalmente no Photoshop com uso de máscaras muito editadas. Mas depois de um episódio no facebook com uma pessoa que fazia fotos de altíssima qualidade com um equipamento bem de iniciante (se não me engano um setentinha com uma eq1 "benzida"), a ingenuidade deu lugar ao ceticismo. Uma pena, pois agora antes de apreciar uma astrofotografia analisou primeiro se é verdadeira. Principalmente no ramo da ciência, acho que a razão deveria sobrepujar o instinto humano de trapacear para receber vantagem.
    Mas é por causa de astrofotógrafos fantásticos e honestos, como você Rodrigo, que esse ramo da ciência na fronteira com a arte vai continuar nos encantando.

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  5. Muito bom o artigo Rodrigo! Esse seu livro, vai falar sobre o que especificamente na astronomia/astrofotografia? Queria pedir a você, algumas dicas de como achar algumas nebulosas e galaxias com meu telescópio. Faz pouco tempo que comecei a observar, porém mesmo usando stellarium e google sky map, o máximo que consigo é achar alguns aglomerados, o que já me deixa feliz. Poderia me dar alguma dica em como visualizar mais facilmente um objeto desses?

    Obrigado e parabéns pelo trabalho

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  6. Boa tarde, Rodrigo. Eu me chamo Erick Moraes, sou engenheiro e já faz um tempo que tenho estado interessado em comprar um telescópio para observações amadoras. Agora terei a oportunidade de trazer um dos EUA e resolvi pesquisar um pouco mais sobre o assunto. Apesar dessa oportunidade, meu orçamento está limitado, sobretudo com esse câmbio. Pensei em iniciar com um refrator com lente de 70mm e distância focal de 900mm, da Celestron. Um telescópio desse tipo seria adequado para observar planetas a partir de uma cidade como Brasília? Desde já agradeço pela atenção. (ps: você por acaso é Andolfato do BCB? Valeu.)

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Eu tenho me esforçado para responder todos os comentários, mas posso demorar um pouco, ou mesmo esquecer algum. Por isso, peço paciência e não fiquem constrangidos de me darem um toque, caso eu esteja demorando demais.